Não suportando conviver com a culpa pela morte precoce da esposa Eva, o jovem escritor César Martinelli está determinado a dar cabo da própria vida afogando-se no mar da deserta Praia do Santo. Contudo, seus planos mudam quando ele encontra acidentalmente um manuscrito pertencente a um escritor chileno chamado Augusto Ramonet que narra uma história de amor marcada pela obsessão, drama e reviravoltas num Chile que convive com a crise do final do governo de Salvador Allende e o golpe de Augusto Pinochet.

Além de tentar solucionar o mistério do manuscrito, César ainda se vê às voltas com uma misteriosa mulher ruiva chamada Catarina que, de algum modo, parece ter relação com o passado de Ramonet e com o manuscrito.

Agora, o escritor deve descobrir o que está por trás da história do manuscrito de Ramonet, desvendar quem é Catarina e, de algum modo, encontrar paz para seu próprio espírito.

O Triste Amor de Augusto Ramonet tece uma complexa história de amor, na qual são abordados temas ligados às paixões humanas, perdas e redenção por meio da paz interior, usando como cenário o conturbado momento histórico do Chile na segunda metade da década de 60, e o espírito de um jovem escritor atormentado pela culpa.

Degustação de O Triste Amor de Augusto Ramonet

Se vocês estão lendo este texto, é sinal de que, finalmente, abracei meu destino. Eu estou morto sob as águas do oceano.

Para muitos amar é o momento mais nobre que um ser humano, homem ou mulher, pode gozar durante sua breve existência na Terra.

Mas, para mim, amar significou um sofrer eterno. Um tumor que se alastra e toma conta de todos os órgãos, dos sentidos.

Fui feliz ao amar? Respondo, sem pensar, que sim. Gozei da extrema felicidade por poder estar perto e passar horas a fio conversando com a mulher que amei.

Mas o que ninguém conta sobre o amor é que a dor que ele causa supera qualquer alegria que possa trazer.

Amei, fui feliz e sofri. Sofri de uma dor infindável, que se avolumou como bola de neve, cresceu, tomou meu corpo como um câncer maligno, cruel e insensível. Mas que culpa tem o câncer se, na verdade, ele só quer sobreviver? Ele não é como o amor? Cresce pulsando vida, e, ao final,mata seu hospedeiro, morrendo com ele?

E, agora, tomo coragem para ir ao encontro do meu destino.

Como disse, se vocês estão lendo este texto, é porque já não estou mais entre vocês. É porque morri.

Capítulo 1

Joguei a última muda de roupa na mala. Juro que tentei dobrar a camisa como Eva fazia. Repeti mentalmente os passos: esticar, de bruços, a peça sobre a cama; pegar a manga esquerda, puxar para o centro; depois, repetir o mesmo passo com a manga direita; com agilidade, fazer pequena dobra interna nas mangas direita e esquerda. Em seguida, pegar a barra da camisa, prendendo com a ponta dos dedos em ambos os lados, e erguer até a altura dos ombros.

Era para estar perfeito. Fiquei alguns segundos olhando o resultado sobre a cama de casal estendida, mas não aprovei. Definitivamente, eu não tinha habilidade para aquilo.

Num acesso de raiva e frustração, desfiz o serviço e amontoei a camisa junto das demais – igualmente amontoadas – dentro da mala.

Durante o ímpeto da mudança, tive que sair às pressas comprar uma mala nova quando percebi que a única de que dispunha havia sido presente de Eva. E não queria nada que me ligasse a ela.

Mesmo sem o mínimo ânimo, deixei minhas pernas me guiarem até uma loja de departamento próxima, onde consegui encontrar uma mala em bom estado numa dessas promoções pós-Natal. Nem notei que minha recente aquisição estava com um considerável defeito na costura, que era tão torta quanto um caminho de rato. Mas aquilo pouco importava. Ela servia ao meu propósito.

Fechei a mala, puxei o zíper. Estava finalmente pronto para partir.

Dei uma última olhadela pelo quarto vazio. Novamente, a cama de casal king-size meticulosamente arrumada, travesseiros devidamente posicionados onde deveriam estar, prontos para acomodar as cabeças cansadas e apaixonadas de um homem e de uma mulher recém-casados. Nenhum sinal de vida. Nem sapatos pelo chão, toalhas molhadas largadas em cima da mesa ou penduradas no porta-chapéus. Tampouco o guarda-roupa exalava algum sinal de que, ali, havia morado alguém um dia.

Fechei a porta atrás de mim, sustentando a mala que estava estufada de roupas. Tive o ímpeto de retornar e deixar algumas camisas e calças para trás, mas resisti. Não queria mais entrar naquele cômodo.

Passei a chave e segui pelo corredor. Detive-me um instante na porta do quarto vazio, que estava entreaberto. Nenhum móvel, nada, apenas o cheiro de pintura nova. Aquele cômodo deveria abrigar o filho planejado para dali a dois anos, que, no entanto, nunca chegaria. Passei chave nesse cômodo também e prossegui, chegando à sala.

Era um ambiente grande, confortável. Mesa de centro com tampo de vidro, dois sofás, um de dois e outro de três lugares, ambos de couro marrom-escuro. Um tapete persa em tons ocre e vermelho-escuro, combinava com as cortinas de renda bege, que caíam em frente à porta basculante que dava para a sacada.

Dei uma última varrida com os olhos em tudo aquilo. A partir do momento em que saísse dali, os móveis, a sala confortável, o quarto do futuro bebê seriam passado. Evitei passar pela cozinha e pela sala de jantar. Eva havia se incumbido pessoalmente de decorar esses dois ambientes.

Tomei o corredor estreito e curto que dava para a porta de saída. Foi impossível não passar pelo espelho, estrategicamente colocado ali por Eva. Tática feminina, que permitia uma última verificada no cabelo e na maquiagem antes de ganhar a rua.

Mas, agora, era minha imagem que via ali refletida. Ou, melhor, o trapo que restou do que havia sido César Martinelli, um dia considerado escritor prodígio, vencedor de prêmios importantes logo em seu livro de estreia. O que via, ali, era a figura de um homem aparentando uns 40 e tantos anos, com sulcos profundos nas faces e uma barba desgrenhada que faria inveja a qualquer andarilho da capital.

O ser à minha frente não tinha nome, nem passado. Muito menos, vida.

Era um nada e, como tal, queria mergulhar no vazio mais profundo que conseguisse.

De repente, senti que uma lágrima queria sair. Engoli em seco. Havia jurado que não choraria mais, que tudo o que era líquido dentro de mim havia secado.

Segurei o choro do adeus e enfiei a chave. Girei, abri a porta e vi o elevador à minha frente. Dei três passos para fora e ouvi o barulho da porta se fechar. Estava feito.

Capítulo 2

Havia rodado quase quatro horas quando resolvi parar num posto de serviços, desses de rede, que, ano a ano, salpicavam as principais vias de tráfego do Estado.

Peguei o celular no console do carro e acionei as travas automáticas com o chaveiro. Mal liguei o telefone e quatro mensagens pularam à minha vista. A primeira era  uma ligação perdida de minha mãe. Tinha me esquecido de ligar para ela. Desde que meu pai morrera, há três anos, minha mãe havia se apegado muito a mim. Não que eu não gostasse do afeto materno, mas tinha horas em que me sentia sufocado e amaldiçoava ferozmente o fato de não ter tido outros irmãos.

As outras três ligações eram do meu agente. Ele podia esperar mais algumas horas por um contato meu.

Enfiei o celular no bolso da calça e me dirigi ao restaurante. Pedi um café com leite e um queijo quente. Não havia comido nada o dia todo. Porém, assim que o menino com o rosto coberto de espinhas colocou o prato com o sanduíche na minha frente, meu estômago deu voltas. Uma mordida foi suficiente para a fome passar e, então, me dediquei totalmente ao café com leite. Depois, pedi um café preto.

O ruim de viajar no final do ano é o tráfego terrível nas estradas, sobretudo nas que vão para o litoral. Perdi cerca de quarenta minutos na fila do caixa e, assim que minha vez chegou, passei o cartão de débito e segui para fora, deixando o ar serrano encher meus pulmões.

Saquei um cigarro do maço e fumei vagarosamente, curtindo cada tragada. Notei com ironia a mensagem da caixa de cigarros: “Este produto contém substâncias tóxicas”. A foto estampava um homem, provavelmente vítima do câncer, moribundo em seu leito, sob os olhares desamparados da filha e da esposa.

Invejei-o. Ele, pelo menos, tinha esposa e filha ao seu lado nos últimos momentos. Eu não teria ninguém ao meu lado no momento de minha morte. A não ser que esperasse a nicotina, o tabaco e o alcatrão fazerem efeito sobre meus alvéolos.

Esmaguei o cigarro com o pé e voltei para o carro. Escolhi com cuidado um CD para me fazer companhia durante o restante da viagem. Legião Urbana me pareceu a opção perfeita. Nada mais deprimente do que a fase final da vida de Renato Russo e, dessa maneira, nada mais adequado para o meu momento.

Assim que o CD player engoliu o CD e a música encheu as caixas de som do carro, parti. Segundo meus cálculos, ainda teria umas três horas de estrada até a Praia do Santo.

Rodei cerca de uma hora e meia em pista dupla até pegar uma rodovia adjacente. Ali indicava, em letras grandes, Caraguatatuba e Ubatuba. Pouco à frente, outra placa, mais modesta, indicando Praia do Santo. Meu destino. Quase deixei a saída para trás, mas tive tempo para uma manobra rápida.

A estrada, como previsto, era horrível. Sinal de que estava próximo. O CD com a voz grave de Renato Russo já havia se repetido várias e várias vezes. Atento à estrada, eu deixei de lado a música.

O relógio digital do painel indicava cinco horas. Hora da chuva. Uma nuvem negra e assustadora tomou o céu e, em minutos, fez vir abaixo uma chuva torrencial.

Praguejei, porque aquilo, certamente, atrasaria minha chegada. Mas, afinal, por que a pressa?

O celular pulou do painel do carro. Reconheci o número do meu agente. Havia me esquecido de desligar o aparelho, mesmo porque a possibilidade de haver algum sinal naquele fim de mundo era mínimo. Mas Lupércio, de algum modo, tinha conseguido me contatar.

Apanhei o aparelho antes que ele escorregasse para o vão entre os bancos.

– César – atendi.

– César! Você está vivo, homem! – berrava a voz do outro lado.

Lupércio tinha aquele tipo de voz de fumante inveterado, rouca e grave, mesmo que nunca tivesse colocado um só cigarro na boca. Sinceramente, nas mulheres, sempre achei tal voz charmosa, excitante até. Mas nele o timbre ganhava um tom cavernoso e funesto.

– Não estou te ouvindo muito bem – anunciei, pronto para desligar o aparelho.

– César… está me ouvindo? Como você está, homem? Ou, melhor, onde você está?

Passei alguns segundos torcendo para a ligação morrer. Finalmente, quando cheguei a um ponto totalmente estragado da estrada, o celular apagou. Recoloquei o aparelho sobre o console, não sem, antes, resistir à tentadora ideia de atirá-lo pela janela.

A chuva durara poucos minutos, o suficiente para enlamear as vias.

A paisagem à beira da estrada era de pobreza e abandono. Barracos ou casas mal acabadas de alvenaria se amontoavam em meio a ruas de barro, poças e esgoto. Crianças, muitas crianças, corriam sujas pelo lamaçal. A maioria tinha o cabelo tão sujo e duro, que não era possível notar, senão com muito esforço, humanidade naquelas figuras.

Isso me fez sentir uma ponta de remorso e ter vontade de dar meia-volta e retornar ao conforto da capital. Afinal, havia conquistado cedo o sonho de muitos jovens, sobretudo daqueles que sonham em viver de literatura num país semialfabetizado como o Brasil.

Comprara um apartamento num bairro residencial excelente em São Paulo, reformara-o. Comprara móveis de primeira linha, sem luxo, mas confortáveis o suficiente para assegurar comodidade para uma família. E, agora, estava metido num fim de mundo desgraçado, vendo crianças malnutridas e imundas correrem ao lado do meu carro.

Distraído, meti o pneu num buraco. Transitar por aquela estrada era um verdadeiro teste para competir em Paris-Dakar. O susto do impacto fez com que retornasse a mim e apertasse o volante. Mas isso não impediu que o carro caísse num segundo buraco, ainda maior. Temi que o air bag fosse acionado pelo baque. Logo, notei que o volante puxava para o lado esquerdo. Mau sinal. Algo no eixo.

– Merda! – gritei, esmurrando o volante com as mãos espalmadas.

Olhei em volta. Não havia uma vivalma por ali, somente eu e meu C3 que, agora, andava à meia-boca.

Andei mais ou menos uns dez minutos, cerca de três quilômetros naquela estradinha esquecida por Deus. Estava dividido entre parar em alguma mecânica, borracharia ou similar – se houvesse algo assim por ali – ou seguir em frente. Foi então que notei, do lado esquerdo da estrada, atrás de alguns casebres empilhados como dominós, o mar.

O relógio digital do painel apontava seis e quinze. Tomei a decisão de encostar num canteiro propositalmente deixado para emergências. O chão era coberto por folhas. O pequeno espaço, o suficiente para um único veículo, era margeado por um barranco coberto por raízes expostas e terra.

“Perigo para um deslizamento iminente”, pensei.

Peguei um mapa que estava todo dobrado dentro do porta-luvas e saí do carro. Acendi um cigarro e sentei sobre o capô. Dei umas três belas tragadas e estendi o mapa. Corri o dedo pelo percurso que havia feito. Saída de São Paulo, a rodovia litorânea, o acesso a Ubatuba e, finalmente, sentido Angra dos Reis e Paraty. No meio desse caminho todo, perdida entre São Paulo e Rio de Janeiro, deveria estar a Praia do Santo.

Notei que tudo estava escurecendo rápido. Pelo horário de verão, não deveria ser noite, o que me deixava uma segunda – e pior – hipótese: nova pancada de chuva.

Voltei para o carro, atirando a bituca do cigarro longe. Se o mapa não estivesse mentindo, ou se eu não tivesse perdido o pouco juízo que me restava, em menos de uma hora chegaria à Praia do Santo.

Fiz a manobra para voltar à estrada e quase fui engolido por um caminhão pequeno, desses de carreto, que descia provavelmente desengatado e fazia a curva como se fugisse da polícia.

Berrei o pior palavrão que me veio à cabeça, mas o único a ouvir foi o vento. Por fim, depois de um longo suspiro, retornei à estrada e segui.