O Natal sem Mamãe (Scortecci Editora, 2008)

Toda a família tem suas chagas, muitas vezes, escondidas sob a aparente felicidade.
A morte da matriarca dona Andreza dá o tom a celebração de Natal da família Pensolatto.
A ceia, agora a cargo da filha mais velha, Nena, traz à tona uma série de recordações e dramas vividos em seu passado e de suas irmãs Gênova e Carolina, vítimas de uma mãe superprotetora e de um pai de caráter obscuro.
O Natal sem Mamãe é o primeiro romance publicado de Paulo Stucchi de debate os laços familiares que, muitas vezes, não são fortes o bastante para esconder as cicatrizes da infância.

Preço: R$ 28,00
Editora: Scortecci – www.scortecci.com.br
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Confira o 1º Capítulo!

A experiência de Nena como principal cozinheira da família dava-lhe a certeza de que o frango estava quase no ponto. Era sempre assim no dia 24, véspera de Natal. Sua casa, um sobrado em um bairro convidativo de classe média, ficava infestada dos mais variados aromas culinários, todos misturados em uma atmosfera composta por temperos exóticos, carne invariavelmente assada, batatas e néctares de frutas frescas. Vinte longos anos na mesma rotina, o Natal em família.

Esquivando a ponta dos dedos de unhas recém-pintadas para o jantar da noite, Nena vestiu a luva de cozinha, acolchoada e estampada por flores em tons verdes e amarelos. Com a agilidade de quem fazia o mesmo trabalho há anos, posicionou as bandejas e a assadeira  sobre a mesa de centro da ampla cozinha, afastou os copos com água e restos de misturas de temperos caseiros e, afastando-se, observou sua obra como um artista que conclui um quadro. O relógio que decorava a parede serviu para lembrá-la de que Rubens estava para chegar. Como sempre, estaria faminto, voltando do shopping com sacolas recheadas de presentes. Dizia que, quando os filhos eram crianças, era mais fácil comprar-lhes presentes. Agora, adolescentes, tudo ficava mais difícil, as exigências redobravam.

Era assim. Agora, mais do que nunca, os dois filhos do casal davam trabalho. Mas Nena estava conformada com isso. Tinha uma família perfeita, como pediu a Deus. Casara-se aos 23 anos e, aos 44, podia ter a satisfação de ter todos mais uma vez reunidos na sala de sua casa como ocorria há vintes anos.

Com um pouco de dificuldade, conferida pela idade que chegava e pelas cruéis dobras de gordura no abdômen, o que as lembrava da necessidade de retornar à ginástica, agachou-se e abriu a porta do forno. O perfume do frango assado invadiu de forma impiedosa a cozinha. Provavelmente, havia chegado à sala. Constatou que faltava ainda um tanto para estar pronto. Tornou a fechar a tampa do forno e retirou as luvas de cozinha. Estava só na casa. Andreza e Marinho estavam fora. Casa dos amigos, sempre os amigos. Mas os dois sempre respeitaram as reuniões de Natal. Sempre. Era um ato sagrado. A única oportunidade de verem os parentes, de desejarem saúde, paz e outros votos comuns  à data.

O silêncio da casa vez com que sentisse saudades da infância, onde a casa de seus pais, então sua casa também, vivia cheia de gente, principalmente no Natal. Sua mãe, também Andreza, como a filha mais velha, preparava o peru com uma receita que, dizia, era segredo de família, trazido pela mãe das terras de Florença. Havia muitas crianças, se não fossem primos seus, eram amigos ou simplesmente filhos de amigos de seus pais. Conforme rezava o costume antigo, era uma das poucas oportunidades que tinha de, à mesa, ouvir a conversa dos mais velhos que, sob o vinho, falavam de tudo.

Fechando os olhos e recostando-se no corrimão da escada, pôde ouvir novamente todo aquele barulho, música para seus ouvidos que, cada vez mais, acostumava-se ao silencio. Rubens passava tempos e tempos no escritório. Era advogado, trabalhava para uma firma. Apesar de conseguir manter os filhos em colégios particulares e dar a ela e às crianças uma boa casa em um bom bairro, cada vez mais via-se atolado de trabalho. O sonho de gozar uma meia idade um pouco mais tranqüila parecia distante do sonhado. A ela, cabia colaborar fazendo o que sabia de melhor, cuidar do estômago da família, dom herdado das veias italianas de seus pais.

Novamente pôde ver claramente, como se sua sala agora fosse a mesma sala humilde enfeitada com um pinheiro e bolas de plástico, a voz de sua mãe ditando-lhe, à beira do fogão, as receitas para o preparo da ceia natalina. O ruído aumentava sempre que seu tio Genaro chegava. Aí virava festa. Sempre assim. Para a família Pensolatto, reunião de família tinha que ser festa. Na cozinha, ao lado da mãe, sentia a alegria daquela senhora gorda, de bochechas rosadas e cabelo claro, que à beira do fogão ganhava uma tonalidade de pele mais avermelhada do que a carne do peru. Vez ou outra, o pai entrava na cozinha só para pegar mais vinho. Era assim. Tinha que ter vinho. E o peru era sagrado. Receita de mãe para filha. Untado com limão, m olho com calda de pêssego, cheiro verde, tempo de forno que, como passar dos anos, deixou de ser à lenha para ser a gás e, agora, elétrico. O peru sempre ocupou o lugar de destaque. Todos os anos, ao centro da mesa, o ator principal.

Nena aproximou-se da mesa de centro da sala e suavemente passou as mãos sobre ela. As lágrimas afogavam-na. Deu um soluço forte, enxugou o nariz com as costas da mão, recompôs-se. Aquela era uma noite de alegria. A pequenina mesa de centro transformou-se na grande mesa de madeira de suas lembranças e os rostos jovens de seus pais eram mais nítidos do que nunca. De repente, uma grande dúvida apertou-lhe o peito. Como seria aquela noite? Tudo iria transcorrer bem. Parecia que lhe faltava um pedaço.

Sobre um balcão, localizado de baixo de um espelho redondo que enfeitava a parede, pegou um porta-retrato antigo. Lembranças da viagem e Foz do Iguaçu. Ela, Rubens, seu pai Agostín e sua mãe Andreza. Todos lá. Tapou a boca para sufocar o soluço. Escutou quando o trinco da porta se mexeu.

– Nena, os presentes? – Rubens entrava carregado de sacolas, como todos os anos.

Ela limitou-se a olhá-lo com ternura e voltar o rosto novamente para o porta-retrato.

– Trouxe o presente do Marinho, de sua irmã e o do seu pai…como pediu. Camisa listrada, sem bolsos, certo?

– Você é um amor. – disse, começando a subir as escadas.

– Nena, não vai ver os presentes?

Ela parou. Parou mas ficou ali, dois degraus acima.

– Está cheirando. Acho que o jantar está queimando. – observou Rubens, sentado no sofá, remexendo algumas sacolas.

– Meu Deus! – Nena de repente despertou e correu para a cozinha. Sem as luvas e o mesmo cuidado de antes, envolveu as mãos em um guardanapo e tirou o frango do forno.

– Isso é frango?

– É…- respondeu, ainda de olhos inchados.

– E o peru? Sempre tivemos peru?

– Este ano não. – e colocou a assadeira sobre a pia – Este ano quis inovar. Gostou?

Rubens a olhou com ternura. Esticou o braço e apoiou-se no batente da cozinha.

– Tem certeza de que está bem para preparar esta ceia? Se quiser, podemos comer fora. Muitos fazem isso hoje em dia.

Nena ouvia com impaciência. Estava mais preocupada em experimentar o frango robusto e dourado à sua frente.

– O Serginho disse que tem um ótimo restaurante italiano aqui perto. Ele e a família vão…

– Eu já disse… – Nena tinha a voz irritada – …que nada mudou, Ru. Vamos ter ceia aqui em casa. Como todos os anos. Ponto, acabou.

– Só fico preocupado, querendo saber se está bem. – disse, esfregando as mãos em seu ombro – Isto é, sem sua mãe…vocês eram ligadas.

Nena largou o frango. Compreendia a atenção do marido. Tinha que corresponder.

– Você é um amor. Mas estou bem. Mesmo. Quando o pessoal chegar eu melhoro. Você vai ver. – e empurrando-o para fora da cozinha – Além disso, o velho Agostín está entre nós, não é, e devemos isso a ele.

– Está me expulsando?

– Você está suado. Vá tomar um banho e se aprontar. Depois vou eu. Logo, hein.

Rubens subiu as escadas. As sacolas ficaram na sala. Olhando para o frango sobre a pia, Nena voltou a chorar.